terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A tarde corria dourada e preguiçosa, e a conversa entre Ana e Teresa girava à volta da vida das duas, uma virada para fora, outra para dentro. A primeira a tentar sufocar a relação que tinha com o companheiro, a outra a tentar resgatar uma série de coisas dentro de si mesma.

Ana dizia que tinha de ter um filho e que tinha de decidir se compravam a casa, pois sabia (oh certezas absolutas da imaturidade) que Carlos nunca se iria embora da vida dela se isso acontecesse! Repetia "para sempre" no seu discurso ansioso. Teresa falava-lhe da insatisfação gigante por detrás dos "para sempres", e nos projectos em construção que caem por terra enquanto tentas preencher a relação com bens ou filhos ou... e passas a ter uma obsessão e a gastar um imenso caudal de energia em vão. Dependes de alguém permanentemente e isso é muito cansativo para os dois.

Teresa dizia pacientemente:

"Fala-se do Amor como sendo algo difícil de encontrar, tipo tesouro no deserto. Ou que podes ter uma sorte incrível e alguém to traz sem pedires. E que quando acontece, é suposto fazeres um esforço muito grande e sacrifícios para o alimentares. Nada disso! Na verdade só tens de escolher estar e ser tu próprio."

Ana perguntava se valia a pena lutar, com o canto da boca a tremer ligeiramente, enquanto segurava o copo de sumo de uma maneira que fazia lembrar as crianças quando ficam desapontadas.

Teresa acendeu um cigarro e respondeu devagar:

“Ana, o Amor está dentro de ti. Se lutas, é território. O Amor não tem barreiras nem fronteiras, permanece sem possuir e permite-te Seres inteiro e aceitar o outro como ele é. Só dessa forma é possível estares com alguém e sentir que chegaste a casa e não te falta nada!"



Gerês

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Alice saíra a correr, com o coração aos saltos e o botão da saia azul quase a caír. A caixa de costura sobre a mesa e a disposição mental para as tarefas domésticas, onde se incluía coser botões, no nível menos que zero.

Até quando Rita conseguiria accionar o outro botão, que disparava o fogo no corpo e a ternura no coração? Pergunta que começava a deixar de fazer por estar exausta, apenas queria abandonar-se no cheiro dos cabelos da mulher que amava, abraçá-la e perder o fôlego.

“Isto é vício de veneno, sem remédio”.

As horas escoavam-se, e ficava a imagem dela até surgir um qualquer assunto que lhe desviasse o pensamento. Por pouco tempo, porque a seguir vinha um cheiro e uma imagem e uma desculpa qualquer para que a presença de Rita voltasse a ocupar todo o seu ser. A envenená-la, porque de facto nada avançava para além do físico e da imaginação do que poderia ser uma vida partilhada.

Alguma coisa empancava na porta que rangia na Casa do Tempo, e nunca a deixava fechar-se nem abrir completamente.

Os dias passavam; o sol não queimava a angústia de Alice, tampouco a chuva arrefecia o desejo, e o vento não mudava a direcção do seu querer.

“Que raio de meses, quase um ano nisto! Atendendo a que uma paixão dura em média dois anos, ainda tenho que penar!”

Ela no fundo sabia que queria estar doente, até sempre de preferência, porque quando um vício toma conta do teu corpo, os poucos momentos de lucidez não chegam para insistires na ideia de recuperar a tua (outra que será que vale a pena) VIDA.

"Que se foda, portanto", pensava ela, enquanto o botão desistia de estar seguro por uma ínfima linha azul, tão azul como o sonho que alimentava Alice.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Na memória tem o mesmo olhar sobre ele, mas agora percorre outra rua, e a nova porta tem uma chave em forma de coração. Só que, invariavelmente, também na memória, desemboca na mesma mesa de madeira tosca, e sente a superfície irregular onde há marcas de copos e cheiro de histórias de quem sonhou e falou demais. Pensa nas vezes em que o vinho se entornou no meio das palavras, e nos pastéis de massa irrepreensivelmente folhada, saboreados com risos, lágrimas e espantos. E sente as almas iguais, mas os corpos separados por um largo mar e uma dor funda no peito.

Caminha até encontrar um "lugar seguro", onde decide tomar um café expresso, porque a espuma lhe recorda que a vida se desfaz rapidamente. Bom é saboreá-la enquanto dura.

Olha o céu. Fica presente ao brilho das estrelas, antes que seja tarde e as nuvens regressem. Sabe que lá em cima é como cá em baixo - nascemos e morremos a cada instante.

domingo, 6 de setembro de 2015

Ele tem o olhar no sinal do ombro dela e o nariz com farinha. Está a mastigar de boca aberta, obviamente deliciado.

E diz ela:

"Olha aí, não te babes!"

E riu-se, com o seu riso claro e a luz nos olhos de quem vê a alma do outro.

A manhã, clara e luminosa, envolvia os dois. Não existia mais ninguém no mundo, com certeza.

Rosa continuava a observar o companheiro, divertida, pensando que as horas melhores da nossa vida são as dos prazeres simples. E perguntou:

"Que ser és tu afinal, a comer com esses modos?"

E diz ele:

"Ó Rosinha, estou assim porque este pão a estalar com manteiga sabe à tua pele!"

E o sol iluminou-lhes mais os beijos.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

É bom quando te sentas no jardim a tomar um café, escutas os risos da casa ao lado, e trocas olhares amistosos com um gato cinzento, enquanto outro, preto e branco, desfila no muro de pedra à tua frente. Ouves a voz de uma criança,

"Tia, morreu ali um pássaro bebé, eu vi!"

Outro gato, de riscas, a ouvir tudo no fundo do jardim, e eu a magicar no que vai e no que fica, na Morte que entra na Vida distraída, a espreguiçar-se, por exemplo, sob um magnífico céu de fim de tarde como este. Instantes impressos nos dias que se desvanecem e passam depressa, depressa...

Escuto novamente aquela voz infantil, o tema já é outro,

"O que é o Amor? Eu gostava de saber, é melhor perguntar à mamã!"

O menino tem a certeza que a mãe, que rega as flores, lhe vai dar uma resposta. E dá,

"O Amor é uma coisa que se abre lentamente, como as flores na Primavera!"

Dias simples.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015


"Gratidão de ser
por estes anos e partículas restantes.
Pela amizade,
que chega a confundir o amor.
Pela bondade,
que torna a solidão desvalida.
Pela hombridade,
à altura do céu.
Pela beleza,
que só à santidade
sobrepassa.
E é flagrante, perdulária,
noutros renascente.
Gratidão(...)
Pelas aves nutrindo os filhos
de penugem e voo.
Pela lentidão escrupulosa
da tartaruga, igual à de Plutão.
Pela leveza materna do vento
transportando pólen.
Pelo calor humílimo
da joaninha sobre a nossa mão.
E por estar na terra
uma só vez, ao sol,
nada pedindo, nenhum segredo,
como um velho lobo-do-mar."

António Osório in "O lugar do Amor"

sábado, 9 de maio de 2015

O burburinho da gente e um sorriso teu na T-shirt do museu. Estampado, impresso na superfície do meu ego. Posso fazer mil cópias, quem quer? Quero eu, que te transformes em algo mais profundo, quem sabe num poema para recordar numa das noites em que alma tem frio. Mas não, és só uma imagem bonita que hei de levar pelos meus dias de sol. Não aquece nem arrefece, apenas alinda a paisagem.