terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A cidade estava a ser despejada de todos os que tinham vindo ocupá-la desde cedo. A Lua já brilhava, anoitecia. Joana levava pela mão o menino, tão pequeno, ainda nos seus quatro anos. Como ele gostava de esticar bem os dedos para mostrar que idade tinha aos que perguntavam!

“Onde está a tua lancheira?”
“Não sei, mamã.”
“Deves pensar que andamos a roubar!”
“O que é roubar, mamã?”
A mãe parou, olhou aquele Amor que era o seu, suspirou e respondeu:
“É quando alguém te tira o que é teu sem pedir...”
E em pensamento:
“Como o teu pai, que me roubou o coração.”
"Eu não tirei-te nada, mamã!"
Joana já tinha lágrimas no rosto, não conseguiu evitar. O pequeno, confuso e aflito, tentava consolá-la,
“Mamã, não chores, vou pedir ao Pai Natal para me trazer outra, ele é meu amigo!”
A mãe sorriu. Estava resolvido, era muito simples. Ela também faria um pedido ao senhor das barbas brancas – que nunca deixasse aquele menino sair de junto dela.

A noite ficou mais densa, os sonhos invadiram mãe e filho, cada um na sua almofada. Ele no país dos brinquedos a conversar com o amigo, ela num lugar encantado do qual não se lembraria no dia seguinte (os adultos esquecem depressa as coisas boas). E, num ápice, chegou a manhã, o pequeno-almoço tomado e uma pequena mancha no canto da boca, pequenina, que Joana se apressou a limpar com o dedo húmido da própria saliva (os adultos são nojentos),
“Despacha-te filho, estamos atrasados!”
Miguel quase voava, com a bata da Escola já vestida,
“Mamã, esta noite conversei com o Pai Natal! Ele tem uma lancheira nova para mim!”
“Igual a esta?”, disse Joana a sorrir, com a lancheira de reserva na mão, já pronta a entrar na mochila.
“Igualzinha!!! Ó mamã, tu és linda! Assim já posso pedir o camião dos bombeiros. Só pode ser um presente, pois é mãe?”
Joana riu e olhou o céu. Contrariava assim o hábito de olhar para o chão, como se carregasse sempre uma pedra gigante às costas. Viu uma nuvem que parecia um coração e sentiu-se, de repente, muito feliz. Talvez o SEU coração não tivesse sido roubado: afinal estava a bater mais depressa, e a promessa de um dia novo parecia-lhe fenomenal! A Esperança faz destas coisas. Tinha-se a ela própria e tinha a sorte de ter por companhia o miúdo mais querido do mundo! Lembrou-se que o Presente é o único momento verdadeiro e não se deve desperdiçar. O Passado já foi, o Futuro ainda vai chegar.

Quando temos coragem de olhar para cima e ver que há um azul imenso, mesmo por trás das nuvens mais negras, voltamos a sentir todas as possibilidades que, a cada instante, a Vida nos dá.

terça-feira, 15 de março de 2016

O que se vislumbrou em Aquário - o que se anteviu, no que se acreditou, o que se profetizou, se previu, do que se duvidou e do que se advertiu - em Peixes torna-se manifesto. Aquelas visões solitárias que, apenas há um mês atrás, pertenciam só ao sonhador, irão agora adquirir a forma e a substância do real. Nós fomos criados por nós, e seremos o nosso próprio fim. E depois de Peixes? Saído do útero, o nascimento ensanguentado. Nós não seguimos: não podemos passar de últimos para primeiros. Carneiro não admitirá um ponto de vista colectivo e Touro não abdicará do subjectivo. O código de Gémeos é exclusivo. Caranguejo procura uma origem, Leão, um objectivo, e Virgem, um desígnio; mas estes são projectos empreendidos isoladamente. Só no segundo acto do zodíaco começaremos a mostrar-nos: em Balança, como uma ideia, em Escorpião como uma qualidade, e em Sagitário, como uma voz. Em Capricórnio, adquiriremos memória, e em Aquário, visão; só em Peixes, o último e mais antigo dos signos do zodíaco, adquirimos uma espécie de individualidade, qualquer coisa integral. Mas o símbolo duplo de Peixes, esse útero reflectido do eu e da consciência de si, é um uróboro da mente - simultaneamente a vontade do destino e a vontade decidida pelo destino - e a casa do desfazer do eu é uma prisão construída por prisioneiros, sem ar, sem portas e coberta de cimento a partir de dentro.

Essas alterações caem em cima de nós, irrevogavelmente, como os ponteiros do relógio caem em cima da hora.


In "Os Luminares" (Eleanor Catton)




Foto: chaosophia218.tumblr.com

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Para ler devagar.

A Vida é um imenso novelo. De corpos, emoções, pensamentos e fenómenos visíveis e invisíveis.

Desenrolamos. As horas, os dias, os séculos.

Enrolamos. As palavras, os gestos, os corpos, as acções, as intuições, as alucinações.

Tornamos tudo num imenso emaranhado.

Gastamos a fibra, cansamos a mente, misturamos as emoções até elas se transformarem em partículas que se espalham pelo Universo...

...para retornarem às almas que vislumbram outras almas. E encontram o fio da meada, desfazem nós, atam o que entretanto se quebrou algures.

Com beijos, com garra, com paciência.

Com o milagre do Amor.

Para viver devagar, e criar outros novelos muito mais bonitos.




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